Um espírito mau da parte do Senhor?

Talvez uma das perguntas mais discutidas nas igrejas cristãs seja essa. Como entender um texto bíblico que afirma que um “espírito mau” da parte do Senhor atormentava Saul (1Sm 16.14)?

Na verdade o problema parece ser mais complicado quando vemos que esse texto não é único. Há diversos outros textos bíblicos semelhantes: Em Juízes 9.23 lemos que Deus envia um “espírito mau” para atuar entre Abimeleque e os “cidadãos de Siquém”; 1 Samuel 18.10 e 19.9 trazem mais informação sobre o espírito mau da parte do Senhor e Saul; 2 Crônicas 18.19-22 fala até de um “espírito mentiroso” colocado pelo Senhor na boca de profetas. Há ainda textos que incomodam por dizer que “Deus se arrependeu do mal” (Êx 32.14) e que “Deus cria o mal” (Is 45.7).

Para começar a discutir uma questão tão complexa é importante destacar que o substantivo “mau” e seu adjetivo “mau” tem significado muito genérico. Na verdade, o termo precisa ser dividido em categorias menores. John Hick, um grande estudioso do assunto tem dividido o mal em quatro categorias: a) existe o mal originado por seres pessoais. Esse é o mal moral, isto é, o pecado; b) há também o mal como sensação física da dor e a angústia do sofrimento psicológico, isto é, o sofrimento subjetivo; c) há ainda o mal natural: é o caso do terremoto, da epidemia etc.; e d) existe finalmente o que é chamado de mal metafísico ou inerente à criatura. Refere-se à finitude e contingência dos seres criados que lhe dão um condição de perene de imperfeição.

A tradição teológica cristão sempre viu o mal como tendo origem no uso incorreto do arbítrio humano. Agostinho, o famoso bispo de Hipona, afirmava que tudo o que Deus criou é bom, e que o fenômeno do mal ocorre apenas quando seres intrinsecamente bons se corrompem. Não pode existir nada inteiramente mau, nenhum ser. Mesmo não admitindo a existência ontológica do mal, Agostinho procurou defender a Deus de qualquer culpa pela existência do mal, negação do bem. Por isso, afirmou também que se a existência do mal não fosse uma coisa boa, certamente Deus onipotente não o teria permitido.

Para entender os textos bíblicos, é preciso reafirmar que a fé bíblica do Antigo Testamento, monoteísta e ética em sua essência, nunca admitiu a idéia de que há seres maus comparáveis a Deus. Não existe um dualismo. Toda experiência humana deve ser explicada em Deus e a partir dele. A visão monista do mundo e da divindade de Israel fazia com que até mesmo toda experiência negativa também fosse atribuída a Deus. Por isso até os chamados espíritos maus são enviados por Deus e estão sob o seu domínio, como é o caso de Satanás no livro de Jó (Jó 1.6). Isso chegou a permitir um certo henoteísmo, pois Deus é considerado em alguns textos como o deus dos deuses (Sl 95.4), isto é, acima dos deuses que só existem sociologicamente. Os deuses das nações nada são, e o Deus verdadeiro está acima de todos eles. Por isso há também uma idéia da vitória divina sobre as figuras mitológicas e suas nações. Este é o caso de Raabe, do Leviatã e da Serpente. Na verdade não há um espaço para qualquer divindade ou ser mitológico que se apresente como o opositor de Deus. Isso significa que todos os “seres maus” estão subordinados a Deus, e de certa forma, acabando sendo também “seus servos”, pois não passam de criaturas que só agem até o limite que Deus lhes permite atuar.

Retomando a amplitude semântica do termo “mal”, precisamos entender que é bem possível que a palavra não tenha significado ético em muitos desses textos bíblicos citados. Na verdade, “mal” tem em diversas passagens o significado de “desgraça”, “infortúnio”, “calamidade”. Se entendermos o termo dessa forma, é possível que o “espírito mau” não seja um demônio que se opõe a Deus, mas sim um “espírito arruinador” (que traz sofrimento) de juízo. Isso significa também que o Senhor “se arrependeu da punição que traria ao povo”, pois Deus não se arrepende do mal enquanto pecado! Finalmente Deus não cria o mal, no sentido ético, mas sim “a desgraça” (Veja Is 45.7 na NVI). Deus permite o mal, mas nunca é o criador direto do mal ético; ele não é o autor do pecado.

(Luiz Sayão) – Teólogo. Hebraísta (USP). Coordenador Geral de Tradução da Bíblia NVI. Prefaciou o meu novo livro: Reflexões sobre a vida de Paulo

Fonte: www.prazerdapalavra.com.br

6 Responses to Um espírito mau da parte do Senhor?

  1. Adriana disse:

    Boa Tarde Pr. Marcello!

    Muito bom esse estudo. Parabéns.

  2. Jeanderson disse:

    A paz do Senhor, Pastor Marcelo
    Foi muito bom este esclarecimento no seu blog, pois, por esses dias ouvi um certo pastor aqui perto pregando em cima deste versículo, e, dizendo que Deus houvera criado o “Mal”, mas, no sentido literal da palavra, ou seja, o diabo. Por isso, sempre visito o seu blog para me manter informado e evitar que heresias sejam faladas no púlpito. Que Deus continue te abençoando!! SHALOM ADONAI!!!

  3. A Paz do Senhor.

    Posso republicar?
    No aguardo.
    Que o Senhor continue a lhe abençoar.

  4. Josiel Dias disse:

    Olá meus queridos irmãos Graça e Paz.

    Gostaria de propor uma parceria em divulgação de banners. Caso aprove estaremos divulgando seu banner em nosso Blog e vise versa.

    Aprendendo uns com os outros crescemos em graça e conhecimento.

    Josiel Dias
    mensagem Edificante para Alma

  5. clarice robles egea disse:

    Pr.Marcello,
    Parabéns mais uma vez, pelo site!
    Eu estava precisando desse estudo para enviar para uma amiga.
    Ela também já se cadastrou.
    Shalom Adonai!
    clarice

  6. Priscila disse:

    Muito boa a explicação, estava lendo agora pouco esse texto de I Samuel e mais uma vez ( pois não é a primeira vez que leio0 fiquei na duvida e decidir pesquisar o assunto.Que lhe acrescente mais em sabedoria, e que vc divida isso sempe com os irmão.
    Abraços!

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