O Salmo 22 é chamado de “o salmo da cruz”. Normalmente pensamos apenas nos Profetas como anunciadores da vinda e do ministério do Messias, mas também os salmos testemunham dele com abundância de dados. O próprio Senhor Jesus assim declarou, em Lucas 24.44: “São estas as palavras que vos falei, estando ainda convosco, que importava que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. É muito provável que Jesus empregasse a palavra Salmos referindo-se à terceira parte da Bíblia Hebraica, Os Escritos. Mas a passagem em tela ilustra bem a verdade que Jesus se viu nos Salmos. Aliás, uma observação de Agostinho, em um de seus comentários sobre os Salmos mostra isso. Ele se referiu a Jesus como “este admirável cantor dos salmos” [1].
Poucos textos do Antigo Testamento são tão realistas e detalhistas sobre a morte do messias de Deus, Jesus de Nazaré, como o Salmo 22. O relato é de profundo impacto. Basta dizer que Aage Bentzen, que não é conhecido propriamente por escrever estudos devocionais, mas sim artigos bem críticos, comentou sobre seu conteúdo: “não é a descrição de uma doença, mas, sim, a de uma execução” [2]. A Bíblia de Jerusalém comentou, em nota de rodapé: “ (…) Próximo do poema do Servo sofredor (Is 52.13-53.12) este Salmo, cujo início Cristo pronunciou sobre a cruz e no qual os evangelistas viram descritos diversos episódios da Paixão, é, portanto, messiânico, ao menos em sentido típico” [3].
Foi nela que Jesus buscou sua quarta palavra pronunciada na cruz e que é apresentada em Mateus 27.46: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Das sete palavras pronunciadas pelo Salvador, na cruz, esta é, sem dúvida, a mais sofrida. O sofrimento da cruz não foi acidental. Jesus se apropria de um escrito de quase um milênio antes de seu nascimento e cujo cumprimento, mais do que em qualquer outro, cabe muito bem nele. Valham-nos as palavras do pregador puritano Arthur Pink, em um sermão em Mateus 27.46: “A palavra ‘desamparado’ é uma das mais trágicas do discurso humano. O escritor (parece-me ser ele, nota minha) não esquecerá facilmente sua sensação de ter passado por uma cidade deserta de todos os seus habitantes – uma cidade abandonada. Quantas calamidades cabem nesta palavra – um homem abandonado por seus amigos, uma mulher abandonada por seu marido, uma criança abandonada por seus pais! Mas uma criatura abandonada pelo seu Criador, um homem desamparado por seu Deus – ó, isto é o mais trágico de tudo”. [4]
Jesus proferiu o Salmo 22.1 em sua língua natal, o aramaico. Foi aqui que ele manifestou o maior de todos os seus sofrimentos: o Pai o abandonara. Ele, que antes dissera “eu estou no Pai, o Pai está em mim” (Jo 14.10), agora se vê desamparado pelo Pai. Aqui se pode ver o cumprimento de Gálatas 3.13, segundo o qual ele nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição em nosso lugar. O fato é que o sofrimento de Jesus é muito bem descrito aqui. O sofrimento físico, infligido ao seu corpo, é muito bem demonstrado nos versículos 14-16. “Os meus ossos todos se desconjuntam” mostram o efeito da crucificação e seu poder de desconjuntar o corpo humano. “Meu coração está como a cera” é uma perfeita descrição de como o coração se sobrecarregava com a crucificação. Todo o corpo pendia dos braços, a respiração se tornava difícil e o trabalho de bombear o sangue, com escassez de oxigênio, se tornava um esforço enorme. Um artigo escrito por um pastor, médico, analisando a crucificação, põe esta situação em termos mais científicos: “Sofreu durante horas a fio a dor sem limites, ciclos de retorcimento, cãibras que desconjuntavam seus ossos, asfixia parcial e intermitente e dor ardente quando os tecidos eram arrancados de suas costas dilaceradas ao mover-se de baixo para cima contra o madeiro áspero da cruz. Então veio outra agonia: a dor profunda e esmagadora no peito quando o pericárdio, a membrana que envolve o coração, começou a encher-se de soro e pressionava o coração. A profecia no Salmo 22.14 estava sendo cumprida: ‘Derramei-me como água, e todos os meus ossos se desconjuntaram; meu coração fez-se como cera, derreteu-se-me dentro de mim’”. [5]
“Seco está o meu paladar, como um caco, e minha língua colada ao maxilar” (v. 15) é uma perfeita descrição da sede, produto da febre. É neste momento que ele expressa sua sede: “Tenho sede” (Jo 19.28). É neste momento que lhe dão vinagre (Jo 19.29), cumprindo-se, então, outro salmo messiânico e também de sofrimento, o 69, em seu versículo 21: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me deram a beber vinagre”.
Ainda no contexto da dor física, o versículo 17 (na Bíblia de Jerusalém, mas 16 na Versão Revisada) traz um problema de tradução. Diz ele: “um bando de malfeitores me envolve, como para retalhar minhas mãos e meus pés”. O problema é com o verbo traduzido por “retalhar” (Bíblia de Jerusalém) ou “traspassaram” (na Versão Revisada – “traspassaram-me as mãos e os pés”). Citamos a Bíblia de Jerusalém, em rodapé, porque o Texto Massorético está incompleto e traz uma nota de rodapé declarando como a New International Version lê: karû. Diz a BJ: “‘Como para retalhar’: ke’erô (do verbo ‘arah), conj.; ‘como um leão’: ka’ari; hebraico, ininteligível; grego: ‘eles cavaram’; siríaca: ‘eles feriram’; Vulgata: ‘eles furaram’. A passagem recorda Isaías 53.5, mas os evangelistas não a utilizaram no relato da Paixão”.[6]
Além do sofrimento físico, houve o sofrimento moral. Pode parecer estranho, mas creio que este dói muito mais que o físico. É sabido que feridas emocionais e morais custam a cicatrizar muito mais lentamente que as físicas. Os versículos 12-13 (“Muitos touros me cercam; fortes touros de Basã me rodeiam. Abrem contra mim a sua boca, como um leão que despedaça e que ruge “) mostram algo deste sofrimento. Havia ódio, um profundo ódio. Que se nota, novamente, no versículo 16: “pois cães me rodeiam; um ajuntamento de malfeitores me cerca”. Parece haver na multidão uma atitude de ironia, de deboche ou desejo sádico de ver a morte de alguém: “eles me olham e ficam a mirar-me” (v. 18).
Os seus despojos são repartidos, numa atitude de desprezo. Ainda não está morto, mas é tratado como se fosse, com a túnica sendo sorteada: “repartem entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançam sortes” (v. 19). Este texto é cumprido em Lucas 23.34. Os despojos de um criminoso eram o pagamento dos seus executores. Algo parecido com o que fazem os chineses, hoje: quando alguém é executado à bala, a conta da bala é encaminhada à família. A lei foi cumprida, mas a pessoa é tão inútil e danosa ao Estado que sua execução é cobrada.
Esta zombaria é muito bem mostrada nos versículos 6 a 8 : “Quanto a mim, sou verme, não homem, riso dos homens e desprezo do povo; todos os que me vêem caçoam de mim, abrem a boca e meneiam a cabeça: ‘Voltou-se a Iahweh, que ele o liberte, que o salve, se é que o ama!’” (Bíblia de Jerusalém). É o sarcasmo dos circunstantes ao pé da cruz, como se vê no relato dos evangelistas.
Há dois outros aspectos que são altamente relevantes, do ponto de vista profético e teológico, no corpo do Salmo 22. Do versículo 19 ao 22 vem o livramento e do 27 ao 31, a declaração de sua vitória. Mas sem deixar de ter estas idéias como fundamentais à nossa fé, importa que ressaltemos o testemunho profético do salmo messiânico, relatando o sofrimento necessário do messias. E algo importante: seu livramento e sua exaltação sucedem por causa do seu sofrimento. Ou seja, o sofrimento do messias está presente nos planos do Senhor. Voltamos a este ponto: sofrer não significa falta de fé e não indica ausência de confiança em Deus. O sofrimento faz parte do plano de Deus e está na raiz da redenção da Igreja. E, mais uma vez, precisamos retornar a uma declaração do Senhor Jesus: “não é o servo maior do que o seu senhor. Se a mim me perseguiram, também vos perseguirão a vós; se guardaram a minha palavra, guardarão também a vossa” (Jo 15.20). Não se pode pensar numa vida cristã sem sofrimentos, quando se reconhece que eles estão presentes na vida do próprio Salvador. E de tal maneira decididos que foram profetizados um milênio antes. O sofrimento de Jesus, o messias dos salmos, não foi acidental. Foi planejado e por isso profetizado. Pode o discípulo pretender não sofrer? Pode-se ver o sofrimento como estando fora do propósito divino? Temos direito de presumir uma vida de vitória.
UM RESUMO – Torna-se difícil fazer um resumo das observações do Salmo 22 pela vastidão da matéria. Mas pode-se sintetizar seu conteúdo nos seguintes termos: o caminho escolhido pelo messias é o do sofrimento. Não nos parece racional, a nós, no século XX, produtos da cultura ocidental e filhos intelectuais dos gregos que somos. Mas o caminho não é difícil de entender, à luz da cultura oriental: o pecado trouxe o sofrimento. Mas é o sofrimento que traz a redenção. Um homem carrega o mais intenso sofrimento para carregar o pecado da humanidade, para levantá-la e reconduzi-la a Deus, na trilha que seguia ela antes do pecado. Sofrimento não é, necessariamente, indício de abandono da parte de Deus nem falta de fé. Pode ser a pedagogia divina para que seus planos obtenham consecução. Pensar nisso se torna necessário, tamanha a ênfase no sofrimento do Messias como mostra o Salmo 22.
Pr Isaltino Gomes
[1] GOURGUES, M. Os Salmos e Jesus – Jesus e os Salmos. S. Paulo: Edições Paulinas, 1984, p. 96.
[2] BENTZEN, Aage. King and Messiah. Citado por KIDNER, Derek, em Salmos 1-72 – Introdução e Comentário.S. Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1980, p. 123. Conforme Kidner, o itálico é de Bentzen.
[3] Trecho da nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém, em comentário sobre o Salmo 22.
[4] PINK, Arthur. The Seven Sayings of the Saviour on the Cross. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House. 1958, p. 65.
[5] Artigo “A crucificação: uma descrição médica”, publicada no jornal Palavra da Fé, ano II, no. 4, março/abril de 1984, página 5. Não possuo mais dados do jornal, pois o que tenho é um recorte contendo o artigo usado.
[6] É o que traz o rodapé da Bíblia de Jerusalém, em comentário in loco, mostrando as variantes do texto. O hebraico não faz sentido e nem mesmo qualquer tradução pode ser entendida facilmente. A idéia é de mãos sendo rasgadas, possibilitando entender a crucificação. Isto torna o relato fantástico, posto que os hebreus desconheciam a morte por cruz. Os romanos a copiaram dos cartagineses e a disseminaram. Mas na época do Salmo 22, um milênio antes de Jesus, sua declaração foge ao limite da compreensão natural. Mais aspectos desta questão crítica aparecem em Kidner (op. cit.), p. 126 e em DELITZSCH, Franz, Biblical Commentary on the Psalms, vol. 1, ps. 317-320.