O texto da chamada dos doze não é o registro de uma ata de fundação de um grupo religioso. Não é um relato fortuito, nem seco. A maneira de Jesus agir foi planejada e muito bem calculada para transmitir uma verdade. Há um ensino teológico implícito no texto. Entendo que em termos funcionais, a Igreja surge aqui, embrionariamente. O registro da chamada dos doze deixa indicações valiosas do que é a Igreja do Senhor. É por aqui que vamos andar.
O conceito de Igreja está muito confuso e difuso em nosso meio. Alguns o entendem pela ótica de comportamento, o que tornar o evangelho em mero behaviorismo espiritual. Não nego que ser Igreja traga a consequência de um comportamento novo e bem distinto do comportamento do que chamamos de “mundo”. No entanto, isto é consequência e não a essência de ser Igreja. Vem depois e não antes.
Outros enxergam Igreja pelo ângulo de curas, dons e bênçãos. Os carismas, parte da Igreja, tornam-se a sua essência, a sua própria razão de ser. Toda a vida da Igreja é centrada neste aspecto.
Outros mais veem a questão somente pelo ângulo de transformação social. Não nego que ser Igreja tenha a ver com isto, mas este não pode ser o princípio hermenêutico para análise da Igreja. Muitas vezes o exagero desta postura faz da Igreja um reboque de partidos políticos. Ela é reduzida a um apêndice de ideologias humanas, o que é um equívoco mesmo que tais ideologias sejam nobres.
É problemático quando uma faceta do evangelho é mostrada como sendo todo o evangelho e quando uma parte da missão da Igreja é mostrada como sendo toda a missão. Perde-se a visão global do fenômeno chamado Igreja, ficando-se com uma visão fragmentária e, não raro, herética. Aliás, “heresia” nos vem do grego hairesis, que não significa, como se pensa, “erro”, mas sim “escolha”. O uso inicial da palavra nos tempos neotestamentários trazia a ideia de facciosidade. Fazia-se uma escolha facciosa. Não de toda errada, mas de uma facção, de uma parte da verdade, e a mostrava como sendo toda a verdade.
Defino minha linha numa sentença, para que saibamos por onde vamos andar: os doze são o embrião da Igreja. São a semente que desabrocha na magnífica árvore que hoje temos. É daqui que parto.
ONDE SURGE O EMBRIÃO DA IGREJA
Em Marcos, o início da pregação do evangelho se dá no deserto. O ponto de partida geográfico é o deserto, de onde vem o Batista: “Voz do que clama no deserto” (1.3). O princípio da pregação está no deserto. Mas não é só isto. Os primeiros batismos também são efetuados no deserto: “apareceu João, o Batista, no deserto, pregando o batismo de arrependimento…” (1.4). Por que, exatamente, no deserto? Por que não numa grande vila ou junto à população mais concentrada, de forma a ter mais popularização?
Foi no deserto que Moisés, o fundador da primeira comunidade povo de Deus, Israel, viveu parte de sua vida. Foi no deserto, por quarenta anos, que Israel peregrinou, em busca de sua terra prometida. Elias andou pelo deserto, por quarenta dias (1Rs 19.8). O convertido Paulo andou pelo deserto. Em Apocalipse 12.6, perseguida pelo dragão, a mulher foge para o deserto.
Foi no deserto que Deus encontrou Moisés e começou o processo de libertação de Israel. Foi também no deserto, quando Judá regressou de Babilônia, que Deus começou o processo de reconstrução do seu povo. O deserto é lugar especial na revelação bíblica. Sem se forçar a situação, pode-se até mesmo desenvolver uma “teologia do deserto”, nas Escrituras.
Deserto, na Bíblia, é lugar de solidão, de sofrimento e de crise. Mas é também lugar de encontro com Deus, de viver com ele, de ser seu povo. Foi no deserto que Israel viveu suas primeiras experiências com seu Deus, recebeu a lei e foi constituído como uma nação, deixando de ser apenas uma massa de ex-escravos. O evangelho começa no deserto porque é a mensagem de encontro com Deus e a chamada para ser seu povo. Gênesis começa com “no princípio”. É a história da criação do início de Israel, em suas raízes mais longínquas. Principalmente após o capítulo 12 começa a história de Israel. Marcos também começa assim. “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1.1). Ele está escrevendo, também, uma história do povo de Deus. Não é sem sentido que esta palavra é posta como a primeira no segundo evangelho. Uma nova revelação está sendo escrita. Um novo povo começa a ser descrito.
O judaísmo ensinava que Deus estava no templo. O evangelho chega ensinando que Deus está no deserto, no sofrimento, na solidão e nas crises dos homens. As roupas do Batista são idênticas às de Elias (2Rs 1.8, Mc 1.6). Ele é o novo Elias. Este recusou a religião estatal, corrompida e subvencionada por Jezabel. O Batista também está à margem da religião estatal, no seu contexto, o judaísmo. Mateus 3.7 registra seu pouco apreço por fariseus e saduceus, elementos presentes no judaísmo. Jesus também entrará em choque com a religião estatal, que tinha como símbolo maior o templo, cuja destruição ele anunciará, em Marcos 13.2: “não se deixará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada”.
A questão que se delineia em Marcos, desde o início, é esta: “vocês querem Deus?”. Pois bem, ele não está na pompa do templo, no judaísmo. Está no deserto. É no deserto que o Batista prega e batiza. E é do deserto que Jesus vem pregando o evangelho.
É de bom observar os dois limites do evangelho de Marcos. Ele começa no deserto (1.3) e termina no sepulcro (16.8), considerando-se que há uma discussão sobre a autoria de Marcos nos versículos de 9 a 20. Não entrarei em aspectos de crítica textual, mas ficarei por aqui. O evangelho não termina no templo. Na realidade, tangencia-o e anuncia o seu fim. Deus não está no templo, mas no Cristo à margem da pompa, no Cristo que vem do deserto, e termina ao lado da sepultura vazia. O sentido teológico é mais amplo, mas é relevante notar, neste contexto, que a cidade santa prometida nas páginas finais da Bíblia (Ap 1.1) é uma cidade sem templo, como se lê em Apocalipse 21.22.
Voltemos à chamada dos doze. Ela sucede num monte: “Depois subiu ao monte, e chamou a si os que ele mesmo queria…” (3.13). Saímos do deserto e estamos num monte. Por que monte, agora? Porque monte é o oposto de deserto. Monte é o local das grandes revelações de Deus, das quais o Sinai é o exemplo mais forte na vida de Israel. Os momentos mais solenes da Bíblia estão mostrados nos montes. O Sinai, o Ebal e o Gerizim, o sermão do monte, a transfiguração, a grande comissão são os maiores exemplos. O que sucede num monte é algo relevante. É de lá que vem o socorro divino (Sl 121.1). Monte é também o lugar dos atos divinos. A escolha dos doze é feita num monte, não numa praia nem numa planície. É um ato divino, portanto. A chamada dos doze em um monte soleniza o evento. Torna-o relevante.
Mateus põe o início da escolha dos doze na ocasião precedente ao sermão do monte (Mt 4.18-22) embora, num segundo texto, em 10.1-4, narre a concessão de poder a eles. Sua linha de pensamento é clara: ele associa a escolha dos discípulos com a ética do reino, que é mostrada no sermão do monte. Marcos não focaliza a ética do reino, neste contexto, mas a escolha dos doze, em si. Este é o grande valor teológico, em Marcos, da chamada dos discípulos: Jesus escolhe os doze para que vivam com ele, participem da obra e ministério dele, sejam suas testemunhas e continuadores do seu trabalho. No v. 15 se lê que deu “autoridade de expulsar demônios”. Eram estas as suas credenciais. Ele expulsara demônios, como lemos em 1.26 e 1.32. E, em 1.27, a expulsão de demônios legitima a doutrina de Jesus, que é chamada de “nova” e “com autoridade”. Os doze recebem as suas credenciais, que mostravam que ele estava trazendo uma doutrina nova. Com Jesus há algo de novo entre os homens. E os doze continuarão, como Igreja embrionária, a mostrar que há algo de novo no mundo. A Igreja é a novidade de Deus para o mundo porque é a encarnação da verdade de Jesus aos homens. A Igreja, cujo embrião se vê nos doze, é a comunidade que continua o ministério do Salvador. Ela é o seu corpo, ou seja, ela é a sua presença neste mundo. Ele age e se manifesta ao mundo por meio da Igreja. Aliás, a declaração de Efésios 3.10 é espantosa e, ao mesmo tempo, clara: “para que agora a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e potestades nas regiões celestes”. Principados e potestades celestiais conhecem a sabedoria de Deus pela Igreja. A Igreja deve ser fonte de sabedoria para o mundo.
Pr Isaltino Gomes